Eu tinha algo em torno de 12 ou 13 anos quando ouvi falar a primeira vez sobre O Senhor dos Anéis e sobre J. R. R. Tolkien, mas nem quis saber direito disso. Tendo essa idade, no início do novo século, era certeza eu seria mais um dos milhões de garotos e garotas que se enlouqueciam pelas aventuras de Harry Potter.
Foi o meu padrinho, Fernando, que me disse “Você devia ler O Senhor dos Anéis, vai sair o filme ano que vem. É uma coisa muito maior que Harry Potter. Você vai gostar”. Olhei para ele como se ele tivesse bosta no lugar de um cérebro. Quem é ele para dizer para um pré-adolescente que sabe tudo o que é bom? Eu, hein.
Eis que viajei com a turma do inglês para Belo Horizonte para ver a estreia do segundo filme do bruxo mais famoso do mundo e, depois do filme (que eu havia detestado por sinal), resolvi comprar um presente para o aniversário do meu irmão. Essa, inclusive, era uma das missões da viagem, já que o aniversário dele estava ali do lado.
Assim como é comum entre os irmãos e pessoas que se amam, comprei um presente pra mim. Comprei, por maior traição que parecesse, uma cópia d’O Senhor dos Anéis, A Sociedade do Anel. Quase desisti da compra quando um vendedor — intrometido como todos os vendedores são — me disse assim: “Você tem cara de que gosta de Harry “Porter” né? Isso aqui é muito maior. Muito melhor.”
Acabei levando. Levei também um livro de piadas do Casseta & Planeta de “presente” pro meu irmão para que minha quest não ficasse em aberto e para que ele de forma alguma quisesse a posse do meu novo livro. Se ele exigisse a propriedade do Senhor dos Anéis e eu não tivesse levado mais nada, teria de dá-la. É praticamente uma Lei do Aniversário Entre Irmãos.
Incrível como funciona a cabeça de uma criança no que diz respeito à suas coisas, não?
Tolkien – O início
Para entender e conhecer J.R.R Tolkien o mais importante é saber de onde veio tudo o que ele criou e o mais importante: o porque que ele criou.
John Ronald Reuel Tolkien nasceu em Bloemfontein, África do Sul em 1892, mas com três anos já morava na terra natal dos pais, a Inglaterra, junto com a mãe e o irmão. Pelo que dizem as tantas histórias a cerca do garoto, ele era um tanto curioso e fascinado por história. Mais tarde, se aprofundando em linguística. O que é de fato a coisa mais importante aqui.
Foi por essa fascinação em particular que ele acabou criando a Arda. Mas calma, que eu chego lá.
Tolkien perdeu ambos os pais cedo. E, particularmente, a morte da mãe provocou uma mudança em sua vida que o marcaria para sempre: a religião. Mabel, sua mãe, era Anglicana. Após a morte do marido, decidiu se tornar católica, fazendo com que sua família cortasse ligações com ela, deixando a família numa situação financeiramente ruim. Outros tempos.
Mabel então acabou morrendo pouco tempo depois por complicações de uma diabetes sem tratamento. Por entender que a mãe havia morrido também por causa da fé, Tolkien se tornou católico fervoroso. Isso está claríssimo em sua obra, principalmente no cerne de seus personagem e nos propósitos do mundo onde nem ele mesmo era Deus.
Após perder a mãe, ele e o irmão passaram a ficar sob os cuidados da igreja que ela frequentava. Essa formação e segunda ‘criação’ também influenciou muito o caráter e a obra dele. Foi nessa época. também, que Tolkien conheceu Edith, seu grande amor e futura mãe de seus filhos.
Família que foi talvez a maior fonte de inspiração, junto com a vontade de dar vida às tantas línguas que ele ainda criaria.
Histórias para crianças e De Tuor e a Queda de Gondolin
Imagine um dia você passeando com a sua família na praia e seu filho pequeno perde o brinquedo preferido. O que fazer para acalmar e ocupar a cabeça de uma criança que não se importa com mais nada naquele momento?
Você cria uma história incrível, sobre como aquele cãozinho de brinquedo está ali fora tendo aventuras maravilhosas.
Foi assim que nasceu uma das histórias que J. R. R. criou para entreter seus filhos. Esse, em particular, foi o que mais tarde seria o livro Roverandom. Como esse, ele criou diversas outras. Histórias de natal, histórias fantásticas e deliciosas como Mestre Gil de Ham (se você tem um filho pequeno, é sério, leia essas duas histórias para ele).
Foi numa dessas também que nasceu o famigerado e tão odiado por tantos Tom Bombadil que, ainda bem, não entra mais nesse texto.
Para um cara que gostava tanto de línguas diferentes, de histórias e principalmente de criar e contar suas próprias histórias, o destino de John Tolkien não poderia ser outro. Em meio às trincheiras da Primeira Guerra Mundial, começou a nascer o esboço do que viria a ser um mundo incrível, escrito e reescrito durante toda uma vida — a própria — e talvez nunca publicado de forma completa na duração de outra vida — a do filho Christopher.
Foi numa dessas batalhas — gosto de pensar que foi na tal em que de um lado estava o soldado alemão Adolf Hitler e do outro estava soldado da rainha John Tolkien (sim, isso aconteceu) — que ele escreveu a primeira versão do primeiríssimo ensaio sobre Arda, De Tuor e a Queda de Gondolin. Esse ensaio é a parte derradeira do que mais tarde todos nós viemos a conhecer como O Silmarillion.
E mesmo hoje, quase 100 anos depois, tudo isso ainda encanta como se fosse a primeira vez.
Tolkien era nerd demais. Ele não estava satisfeito em estudar línguas novas, antigas, mortas ou ultrapassadas. Ele gostava tanto disso que criou dezenas de línguas. Ainda não satisfeito, queria por que queria entender como essas línguas funcionariam, como iriam evoluir através de eras, como seria uma língua depois que um povo se separou, como se comportaria tudo isso em um mundo que existisse de verdade?
Para responder isso, ele criou Eä:
“Conheço o desejo em suas mentes de que aquilo que viram venha na verdade a ser, não apenas no pensamento, mas como vocês são e, no entanto, diferente. Logo, eu digo: Eä! Que essas coisas Existam! E mandarei para o meio do Vazio a Chama Imperecível; e ela estará no coração do Mundo, e o Mundo Existirá; e aqueles de vocês que quiserem, poderão descer e entrar nele. – E, de repente, os Ainur viram ao longe uma luz, como se fosse uma nuvem com um coração vivo de chamas; e souberam que não era apenas uma visão, mas que Ilúvatar havia criado algo novo: Eä, o Mundo que É.”
— Trecho de O Silmarillion
E colocou lá dentro seus povos, suas línguas, suas vidas e suas histórias. Personagens e passagens que ensinam e ilustram muito mais que um espelho da história da humanidade. Ensinam o valor da amizade, da coragem, do amor, do medo, e de fazer aquilo que se deve fazer da melhor forma possível.
Tolkien me ensina, todos os anos, desde meus 13, esses valores. Como ótimo professor que sempre foi, eu sempre volto a seus ensinamentos, tentando entender e assimilar ainda mais. Cada vez mais.
Quënta Silmarillion
Se você só conhece Tolkien por causa d’O Senhor dos Anéis, e agora por causa d’O Hobbit, deve saber que essas duas histórias são camadas finíssimas de passagem de tempo quase irrisória no vasto mundo criado por ele. O Senhor dos Anéis, por exemplo, entre o início da jornada – encontro dos Hobbits com Aragorn em Bri – e o fim – destruição do Anel – se passa apenas um ano.. O Hobbit não se alonga mais do que a passagem de um ano também.
O Silmarillion, que é um livro bem pequeno, passa por cima de praticamente três eras inteiras. E não se engane, esse livro é um resumo. Quase todos os capítulos dele são, em si, um livro, um ensaio, originalmente muito maior, mais completo e mais denso do que foi para o livro final, editado e lançado por Christopher Tolkien.
A história do Turambar (não obstante o meu preferido) por exemplo, é a segunda maior canção ou história criada por Tolkien. N’O Silmarillion é um capítulo normal, mas a história completa — última história publicada no Brasil sob a autoria dele — o Narn î in Húrinou Os Filhos de Húrin — é praticamente do tamanho do “Silma”.
Esse é o nível de densidade, tamanho e grandeza do trabalho de Tolkien. Os inéditos no Brasil e tão sonhados HoME – History of Middle Earth(são de uma coleção de histórias da Terra-Média, que é praticamente a obra completa de Tolkien, ou o que eu chamo de O Silmarillion Completo).
Tudo o que ele escreveu se torna tão mais mágico e genial quando você conhece tudo o que está por trás que, cada vez que você lê as obras, identifica algo novo. Quando olho para o mapa desenhado n’O Senhor dos Anéis, sei o que aconteceu com a parte ocidental da Terra-Média. Sei o porque dela estar embaixo d’água. Sei o que causou aquilo.
Imagina a diferença de você ir até Berlim, ou Paris, ou até mesmo Londres, sem nunca saber que existiu uma Segunda Guerra Mundial. Imagine conhecer locais históricos do nosso mundo sem ter a menor ideia que eles são históricos?
É o mesmo que ler as histórias do fim da terceira era da Terra-Média sem saber que Sauron jamais teria se tornado O Senhor dos Anéis, não fosse pela inocência de alguns Elfos. E que a Guerra do Anel jamais teria tomado forma sem a burrice e petulância dos antepassados do próprio Aragorn, que teve que se encarregar do fardo anos depois.
Perde muito o valor, o gosto e o brilho.
Se você acha que conhece uma história trágica, daqueles de dar gosto em autor de novela mexicana, experimente o já citado Filhos de Húrin.
Se achar que ainda não se cansou daquelas histórias de amor em que você torce pelo mocinho, sofre pela mocinha e no final morre de medo do vilão vencer, tente entrar de cabeça na Balada de Leithian,(De Beren e Lúthien).
Agora, se o que você está precisando é de uma história daquelas, que é praticamente um folhetim das nove, indico fortemente o também citado — e das melhores coisas que Tolkien escreveu — De Tuor e a Queda de Gondolin. Deuses, traição, bastardos, amores improváveis, um reino escondido, uma profecia, morte, destruição, redenção e com um final de cair o queixo.
Tudo isso, e mais tantas pequenas histórias dentro de um pequeno ‘livro’. Não me surpreende eu ter lido ele tantas e tantas vezes nos mais de 12 anos que o tenho. Cada vez que eu o leio, gosto mais. Praticamente meu Guia do Escoteiro.
Um Anel para a Todos Governar
Essa aí da foto é a minha terceira réplica do famoso Um Anel. A terceira e mais bonita até agora, acompanhado do Nenya (um dos três anéis élficos, o da Galadriel) e do pingente que a Arwen dá para o Aragorn. Esses dois últimos dei de presente para minha namorada. Lembra daquele história do começo do texto que para as pessoas que você ama de verdade o presente é pra você? Então. Continuo com isso até hoje.
Eu perdi — ou tive roubado por uma criatura malévola — duas réplicas. Como o próprio Bilbo Bolseiro me ensinou, “a terceira é a que vale”. Então, se eu perder esse aí, nunca mais.
Para um fã como eu, que enxerga a obra de Tolkien como algo único, uma obra gigantesca sobre um mundo chamado Arda, é difícil falar de coisas separadas sem entender tudo como um grande hipertexto. Isso liga nisso, que liga naquilo outro que foi a causa daquela merda toda ali.
Principalmente por se tratar de dois quase acidentes. Tolkien escreveu O Hobbit para seus filhos sem ter a menor ideia do que ele viria ser. A Lei do Acaso Universal, que fez nascer entre outras coisas Star Wars e O Poderoso Chefão Parte I, também fez com que a história do Um Anel existisse.
Quando terminou o livro contando as aventuras de Bilbo, Tolkien nada tinha decidido que Sauron estava no meio da história e que o tal Anel era tão poderoso assim. Da mesma forma que George Lucas não fazia ideia de que Darth Vader seria o que foi, nem que Coppolafosse dar conta daqueles produtores.
O interessante é que, no fim, deu tudo certo. Ou quase. A primeira parte da Sociedade do Anel é tão difícil, tão difícil que eu, jovem, queria dar uns três tapas na cara de quem me falou que aquilo ali era melhor que Harry Potter. Eu olho para a capa do livro e só lembro do olho tordo do vendedor intrometido. Acredito hoje ser uma provação. Você também tem que merecer entrar na Sociedade para viver aquela aventura e levar o maldito anel para o fogo.
Eu me lembro muito bem das experiências que tive lendo esses três livros. O primeiro me matou de raiva no início, mas me deixou retardado no final. “Não é que esse trem era melhor mesmo que o tal Harry Potter?”, pensei logo que terminei. E mais incrível, comecei a ler o segundo livro — As Duas Torres — no exato dia em que assisti no cinema o primeiro filme.
Imagine o tanto que eu tremia.
Meu irmão teve a certeza que eu ia desmaiar de tanta excitação. Lembro de ganhar um kitzinho para cuidar de árvores ao sair do cinema. Tinha uma mudinha. Ir no cinema era coisa rara pra mim, que vivia em Monlevade e não tinha dessas coisas. Filme que, inclusive, me deu um mega spoiler, já que Boromir só morre no primeiro capítulo do Duas Torres.
Lembro também de outro fato particular com o segundo livro, envolvendo meu irmão, Gandalf talvez voltando a vida e minha mãe muito, muito brava comigo.
Era uma quinta qualquer, já de noite. Eu tinha aula no outro dia e meu irmão havia acabado de chegar da rua. Bêbado. Eu lendo a parte em que Aragorn, Legolas e Gimli estão na Floresta de Fangorn, investigando as aparições de um tal Mago Branco. Eu tinha certeza que era Gandalf e estava tão absorto na leitura que meu irmão chegou disse “Arsghutghbluf!”, deitou e dormiu instantaneamente e eu nem percebi.
A percepção só veio quando ouvi a porta do quarto da minha mãe abrindo e ela perguntando “Daniel, quêquêisso? Daniel!?” … “Pedro, quêquêisso? Isso é hora de ler? Você tem aula amanhã, vai dormir agora. Apaga essa luz. Olha seu irmão aí coitado, querendo dormir e você com a luz acesa! Vai dormir agora e para com isso!”
Eu não acreditei que a mulher que me deu a vida estava tentando me privar naquele momento crucial saber se Gandalf estava de fato vivo, ou não. Me revoltei. Esperneei. Nada adiantou. Ela disse que aquilo não era hora de Gandalf coisa nenhuma e que eu tinha aula.
Eu dizia que eu precisava saber se o Gandalf voltou. E meu irmão lá, no décimo quinto sono, com luz acesa e tudo mais.
Conclusão da história. Terminei lendo — num sentimento de derrota inacreditável — sentado no vaso, no banheiro. Celulares tinham luzes horríveis naquela época.
O terceiro livro, O Retorno do Rei, me lembro apenas de ler enquanto fazia uma viagem com meu pai, para Caldas Novas. As oito horas de estrada na ida e oito na volta consumiram quase toda a história. Até eu simplesmente me recusar a continuar o livro.
Terminar O Senhor dos Anéis seria quase como praticar eutanásia no meu melhor amigo. Num cachorrinho. Num pandinha na China. Não se faz isso. Eu não podia simplesmente pegar toda aquela experiência e chegar num ponto final. Lembrando que eu nada sabia da existência de Silmarillion ou Hobbit. Me recusei. E sim, antes de o Frodo chegar à Montanha da Perdição eu parei de ler. Queria que a história nunca acabasse.
As palavras de sabedoria vieram do meu padrinho. Aquele mesmo que disse que aquilo era maior. “Eu não acredito que você não quer terminar. Você tem que saber como acaba. Eu sei que você sabe a essa altura que eles vão destruir o Anel. Você precisa saber como isso acontece.” E eu achando que sabia tudo.
Peguei o livro de volta e terminei.
Fiz isso todo ano deste então. Por 10 anos. Já faz uns bons dois anos desde a última vez que acompanhei Frodo e Sam nas Fendas. Só de escrever esse texto e contar minha experiência com O Senhor dos Anéis, fico com aquela vontade de viver tudo de novo.
E quem viveu SdA sabe que cada vez é diferentemente saboroso. E a gente pode pular as partes cascudas mesmo sem culpa (ó Tom…).
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O que eu mais gosto do Tolkien é que a obra é tão grande e tão difundida que você pode compartilhá-la de diversas formas. Por trás dessa coluna de posts Mentores para enriquecer sua vid, quis mostrar que John Tolkien é muito mais do que o senhorzinho que inventou aquela história dos filmes de Peter Jackson.
Ele foi um daqueles homens únicos, singulares, que me fazem acreditar em algo de mágico nesse mundo. É a mesma magia que fez nascer um Douglas Adams.
Eu me divirto muito mais contando sobre as profundas mudanças que esse homem causou no meu caráter, na minha formação do que falando das histórias em si ou do que perdendo tempo – mais tempo – discutindo se o Balrog voa ou não voa.
Gosto muito de ouvir também esse tipo de coisa. Adoro encontrar Tolkenianos que entendem o que eu sinto quando falo sobre ele ou sua obra. Gosto tanto quanto de abrir a cabeça de alguns e convencê-los a se deleitar como eu me deleitei com a Terra-Média.
O Legado
Filmes. Livros. Músicas. Contos. Jogos…
É simplesmente impossível falar de tudo. Eu precisaria escrever um livro (já fizeram isso várias vezes) para poder realmente abranger um pouco da vida e do que ele criou.
Compartilhe sua história conosco. Conte o que aprendeu com Tolkien, quem são seus preferidos, suas histórias mais legais, quais perrengues já passou por causa de toda essa loucura. Próximo mentor da lista.